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Urbanismo Social e o Fim da Ilusão Técnica: É no Território que se Conhece a Cidade

9 de junho de 2025
vista de medelin-colombia

O planejamento urbano, como normalmente é praticado em muitas cidades brasileiras, continua preso a um mito: o de que a cidade pode ser entendida de longe, por mapas, editais e estatísticas. Esse distanciamento técnico é confortável para quem projeta políticas públicas de gabinetes refrigerados. Mas o que ele ignora é o essencial: o território é mais complexo do que qualquer planilha consegue captar.

Essa ilusão técnica se manifesta quando acreditamos que planilhas podem substituir a escuta, que drones podem captar a alma de um bairro ou que um plano diretor escrito sem participação popular será automaticamente eficaz. É o tipo de racionalidade que considera a construção de um viaduto uma solução para a mobilidade, sem considerar que a violência no entorno inibe o uso do espaço. É o mapeamento que ignora a vida cotidiana, o edital que desconsidera as redes de apoio já existentes. A cidade, nessa lógica, deixa de ser espaço de vida para se tornar um projeto técnico descolado da realidade.

A experiência internacional de Medellín nos ajuda a enxergar essa limitação com clareza. A cidade colombiana, marcada por décadas de violência e desigualdade, rompeu com a lógica da política pública fragmentada ao adotar uma abordagem chamada Urbanismo Social. Lá, segurança, mobilidade, cultura, lazer e inclusão deixaram de ser áreas isoladas para se tornarem parte de um mesmo corpo: o território vivo.

Essa transformação só foi possível porque Medellín se recusou a ser planejada “de fora”. O Estado decidiu escutar, ocupar os vazios urbanos com presença institucional e atribuir a esses espaços não apenas infraestrutura, mas sentido e vínculo. Reconheceu-se, ali, que a técnica, sozinha, não é suficiente quando o que está em jogo é pertencimento, dignidade e funcionalidade urbana. Planejar a cidade exige mais do que cálculos: exige reconhecer e integrar a realidade de quem a vive todos os dias.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro e em tantas outras cidades brasileiras, seguimos com políticas públicas que não conversam. A mobilidade é pensada sem segurança. A segurança, sem infraestrutura. A infraestrutura, sem escuta das comunidades. O resultado? Intervenções parciais, ineficazes e muitas vezes simbólicas. A máquina pública age como o Professor Bleent, da metáfora de Karl Weick: tão obcecado em estudar o Besouro Floon que, ao se aproximar com sua lupa, incendeia o próprio objeto de pesquisa. Não basta querer transformar a cidade; é preciso não destruí-la com os próprios métodos.

A ciência urbana que precisamos hoje não é aquela que busca uma verdade absoluta sobre o espaço, mas a que reconhece sua própria incompletude. A objetividade não está na neutralidade, mas na honestidade de assumir que todo pesquisador carrega seus limites, seus valores e suas escolhas. E que, diante da complexidade das cidades, entender é mais sobre estar do que sobre calcular.

Pensar com base em urbanismo social é reconhecer que a cidade não é uma máquina, mas um organismo. E que políticas públicas eficazes não surgem de cima para baixo, mas do encontro entre saber técnico e saber territorial. Isso exige uma postura epistemológica diferente — aquela que abandona a ilusão da previsibilidade e adota a coragem da escuta e da integração.

O planejamento sistêmico, baseado em evidências e conectado ao chão da cidade, não significa inflar o Estado. Pelo contrário: é fazer mais com menos, articular o que já existe, garantir que as ações públicas não se anulem. O liberalismo que defendo exige eficiência, e eficiência, no caso urbano, significa inteligência integrada.

Se queremos cidades mais justas, seguras e humanas, precisamos enterrar a ideia de que é possível resolver os problemas urbanos com políticas públicas isoladas. Precisamos substituir o mito da cidade tecnicamente planejada pelo compromisso com a cidade socialmente vivida. E isso começa por um passo simples e revolucionário: escutar o território. Cidades não são problemas a serem resolvidos por planilhas, mas histórias a serem escritas com quem nelas habita. Escutar o território é o primeiro ato de um planejamento que quer, de fato, transformar.

Um Estado eficiente, na perspectiva liberal que defendo, não é aquele que se ausenta, mas o que atua com inteligência, foco e responsabilidade. Não se trata de inflar estruturas ou multiplicar programas, mas de alinhar políticas públicas às reais necessidades do território, garantindo resultados concretos para quem mais precisa. Soluções liberais para as cidades passam por parcerias público-privadas bem desenhadas, uso racional dos recursos, gestão baseada em evidências e accountability como regra, não exceção. Em Medellín, por exemplo, a integração entre teleféricos, centros culturais e ações de segurança em áreas periféricas não se deu por acasos técnicos, mas por um desenho estratégico articulado com as comunidades. É possível fazer o mesmo nas cidades brasileiras, com modelos adaptados e gestão responsável.

A fragmentação entre secretarias, a ausência de metas integradas e a burocracia paralisante são sintomas de um Estado que gasta muito e entrega pouco — exatamente o oposto do que defende o liberalismo. Um Estado liberal eficaz reconhece que a descentralização, o incentivo à autonomia local e a escuta ativa das comunidades são instrumentos de gestão racional. É ineficiente manter estruturas que não se comunicam, que repetem diagnósticos ou que ignoram a inteligência prática dos territórios.

A liberdade que propomos não é abandono — é autonomia com suporte, é reduzir a burocracia que paralisa e abrir espaço para a criatividade local florescer. Planejar com escuta e eficiência é garantir que o Estado funcione onde ele realmente é necessário. Cidades livres, justas e vivas exigem um governo que saiba quando agir — e, principalmente, como.

Camilla Teixeira

Cientista Política formada pela UNIRIO. especialista em políticas públicas. Diretora de Núcleos do LOLA Brasil.
Atua com fortalecimento institucional e planejamento urbano.



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