Entre Panfletos e Liberdade
O Projeto de Anistia referente aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023 configura um dos temas mais controversos do cenário político brasileiro atual. Defendido por setores da oposição e rechaçado por grande parte da sociedade e das instituições, o projeto permanece travado no Congresso.
Este artigo analisa o impasse do projeto, sob a ótica da teoria política, com base em autores como Thomas Paine e Friedrich Hayek. Com base no conhecimento dos especialistas mencionados, o artigo demonstra que o projeto só terá chances reais de avanço se for alçado a pauta popular e associado a princípios de justiça e liberdade pela população, não pelas elites políticas.
O Projeto de Anistia e seu bloqueio institucional
Desde 2023, projetos tramitam no Congresso visando conceder anistia a manifestantes presos ou processados pelos eventos de 8 de janeiro. Contudo, a resistência institucional tem sido intensa. Parlamentares governistas e o Judiciário afirmam que tais crimes são inafiançáveis e o perdão comprometeria o Estado Democrático de Direito.
As dificuldades políticas da proposta decorrem também de seu déficit de legitimidade social. Não existe uma pressão popular majoritária pela anistia; ela é percebida como pauta de nicho, restrita a grupos alinhados ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Sem apoio social amplo, a anistia permanece congelada, revelando um dos princípios fundamentais da política democrática: nenhum projeto avança sem respaldo popular efetivo.
É nesse ponto que a lição de Thomas Paine se torna central, no qual ele demonstra que transformar uma reivindicação particular em uma causa nacional é o primeiro passo para moldar a agenda legislativa.
Thomas Paine e a construção da pauta popular
Thomas Paine (1737–1809), ao publicar Common Sense em 1776, desempenhou papel crucial na Revolução Americana ao converter a ideia da independência — até então restrita a elites — em um clamor popular.
Paine escreveu em linguagem simples e emocional, conectando princípios de liberdade com a experiência cotidiana dos colonos. Sua obra foi lida, comentada e difundida em todas as colônias, sendo considerada decisiva para a criação de consenso em torno da ruptura com a Coroa Britânica.
A lição fundamental de Paine é que ideias só se tornam força política quando traduzidas em narrativas acessíveis, morais e mobilizadoras. A independência não era somente uma tese: era a defesa da liberdade contra a tirania, do trabalhador contra o rei, da dignidade contra a opressão.
Aplicado ao caso da anistia de 8 de janeiro, o ensinamento é direto: não basta reivindicar tecnicamente o perdão; é necessário construir uma narrativa capaz de sensibilizar a maioria da sociedade.
Os defensores da anistia precisam apresentar argumentos que ultrapassem a defesa ideológica do bolsonarismo, focando em princípios mais universais: a justiça proporcional, o direito ao devido processo, a necessidade de pacificação nacional.
Uma comunicação inspirada em Paine enfatizava histórias individuais — pessoas que, sem histórico de violência, acabaram presas por participação episódica em protestos. Mostraria rostos, famílias, dramas humanos. Apelaria a valores amplamente aceitos, como compaixão, segunda chance e respeito aos direitos civis.
Sem essa mobilização emocional e ética, a anistia continuará sendo uma bandeira isolada, incapaz de forçar o Congresso a agir. Com ela, poderá tornar-se uma exigência cidadã legítima e incontornável.
Hayek e a proteção das liberdades em tempos de crise
Enquanto Paine ensina como mobilizar o povo, Friedrich Hayek (1899–1992) nos alerta para o que está em jogo: a preservação das liberdades individuais diante da expansão do poder estatal.
Em Law, Legislation and Liberty, Hayek explica que momentos de crise são férteis para o crescimento da autoridade governamental. Sob a justificativa de restaurar a ordem, Estados tendem a ampliar sua esfera de ação, restringir direitos e erodir salvaguardas legais. Emergências justificam exceções; exceções tornam-se rotinas.
No contexto pós-8 de janeiro, o Brasil testemunhou uma reação estatal intensa: prisões preventivas prolongadas, tipificações penais severas, julgamentos em massa. Embora necessária a defesa das instituições democráticas, há claros sinais de rigor excessivo e aplicação desigual da lei, que preocupam sob a perspectiva hayekiana.
Hayek defende que o Estado de Direito exige leis gerais, impessoais e previsíveis. Quando o sistema jurídico é utilizado para punir mais duramente determinados grupos políticos, rompe-se a neutralidade necessária ao funcionamento de uma ordem livre. A democracia, segundo Hayek, corre perigo não somente pelos ataques externos, mas pela concentração interna de poder em resposta a crises.
Neste cenário, a anistia — se concebida criteriosamente — pode ser interpretada não como absolvição da violência, mas como proteção contra o excesso estatal. Um gesto legislativo de perdão a manifestantes de conduta menos grave reafirma que a liberdade deve prevalecer, mesmo contra a tentação punitivista que as emergências alimentam.
A transformação necessária: da pauta de nicho à causa nacional
Atualmente, o projeto de anistia sofre de três limitações principais:
A superação dessas barreiras exige uma estratégia inspirada em Paine: reformular a defesa da anistia em termos de valores universais e experiências humanas comuns.
Em paralelo, requer fundamentação em princípios liberais sólidos, como os de Hayek: limitar o poder estatal, preservar o Estado de Direito e evitar o autoritarismo sob o pretexto da segurança.
Em termos práticos, isso implica:
A experiência histórica brasileira: aprendizados e advertências
O Brasil possui exemplos históricos onde a pressão popular modificou a agenda legislativa. A Lei da Anistia de 1979 foi aprovada em meio a um forte clamor social por reconciliação nacional, enquanto as manifestações de 2013 forçaram o Congresso a adotar uma série de medidas para responder à indignação da população.
Esses episódios ensinam que só grandes mobilizações conseguem alterar o comportamento institucional. Sem elas, projetos sensíveis tendem a ser bloqueados pelo cálculo político de preservação de imagem.
O projeto de anistia de 8 de janeiro continua longe de atingir esse patamar. As manifestações a favor, embora expressivas, são restritas em alcance. As redes sociais apresentam polarização significativa sobre o tema, e pesquisas de opinião apontam divisão ou rejeição majoritária à proposta.
A tarefa dos defensores da anistia, portanto, é monumental: transformar um tema polarizado em um imperativo democrático. E para isso, tanto as lições de Paine quanto os alertas de Hayek são instrumentos indispensáveis.
Conclusão
O Projeto de Anistia para os presos de 8 de janeiro enfrenta resistência porque carece de apelo popular amplo e de justificativa moral convincente fora do círculo político. Para se tornar viável, é necessário reconstruí-lo como uma causa de da população, com valores que podem ressoar mesmo entre aqueles que rejeitam a política e os políticos que guiam a pauta.
Thomas Paine ensina que ideias ganham poder quando se tornam linguagem comum do povo. Friedrich Hayek adverte que o excesso de poder estatal é sempre o maior inimigo da liberdade, especialmente em tempos de crise. Defender a anistia não é defender atos violentos. É defender que a democracia se fortalece ao limitar sua própria capacidade de punir, ao restabelecer a justiça proporcional e ao optar pelo perdão, onde a punição desmedida somente perpetua divisões.
Se os defensores da anistia conseguirem traduzir essa mensagem em linguagem pública, acessível, ética e persuasiva, o projeto deixará de ser uma bandeira política e poderá tornar-se, como Paine sonhou para suas causas, uma expressão autêntica do espírito de liberdade da nação brasileira.

Tailize Scheffer
Cientista Política, doutoranda em Ciência Política.
Criadora de conteúdo para a comunidade Politicando.