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O único medo do político é perder voto

24 de abril de 2025
urna eleitoral

No cenário político brasileiro contemporâneo, é comum a sensação de que o único medo do político é perder voto — e essa sensação não está errada. Em outras palavras, muitos representantes eleitos parecem orientar suas ações, prioritariamente pela perspectiva de não desagradar o eleitorado — ainda que isso signifique postergar decisões importantes ou agir de forma contraditória.

O problema central é que, quando a preocupação maior de um político é manter-se no poder, suas alianças, discursos e políticas públicas tendem a ser ditados muito mais pelo cálculo eleitoral do que pelo interesse público de longo prazo. Esse comportamento oportunista vem alimentando a descrença popular e uma crise de representação, em que eleitores desconfiam que seus governantes colocam os próprios objetivos acima das necessidades da sociedade.

A seguir, analisaremos criticamente esse fenômeno e os exemplos recentes do Brasil, mostrando como o medo de perder votos influencia decisões políticas. Por fim, discutiremos caminhos para mitigar esse problema — em especial por meio da educação política para empoderar o eleitorado, reduzir a manipulação simbólica e fortalecer a democracia.

Elites e a busca pela manutenção do poder

A teoria das elites oferece um arcabouço útil para entender por que políticos temem tanto perder votos. Segundo Gaetano Mosca, em qualquer sociedade existe sempre uma minoria organizada que detém o poder (os governantes) e uma maioria desorganizada sem poder efetivo (os governados). Essa classe política dirigente forma um grupo coeso que monopoliza as decisões, impondo sua vontade sobre a maioria por diversos meios — legais ou até arbitrários.

No contexto democrático, essa elite política precisa passar periodicamente pelo crivo das eleições, mas permanece guiada pelo instinto de conservar seu domínio. Vilfredo Pareto observou que as elites históricas lutam entre si e se revezam no poder, sucedendo umas às outras na dominação política. Em outras palavras, quando um grupo de elite perde apoio e “cai”, outro toma seu lugar — o que explica por que a ameaça de perder votos (e consequentemente o cargo) é levada tão a sério pelos detentores do poder.

Já Robert Michels, ao estudar partidos em democracias, constatou uma tendência inerente à oligarquização: mesmo organizações supostamente igualitárias acabam controladas por poucos líderes, fenômeno que ele denominou de “lei de ferro das oligarquias”. Esses líderes desenvolvem interesse próprio na perpetuação no cargo, tornando-se uma elite interna.

De modo semelhante, o sociólogo americano C. Wright Mills concluiu, em The Power Elite, que mesmo os regimes democráticos podem ser comandados por uma minoria interligada — um “elite do poder” que ocupa os postos-chave na política, nas Forças Armadas e na economia. Mills reconhecia que a sociedade moderna é frequentemente controlada por essa minoria poderosa em detrimento da maioria desprovida de poder.

No contexto brasileiro, isso se traduz na busca quase obsessiva pela reeleição ou pela sobrevivência política. O medo de perder votos nada mais é do que o medo de ser desalojado dessa posição de elite — seja substituído por um adversário (na lógica paretiana da circulação de elites) ou ver seu grupo perder espaço.

Esse impulso de autopreservação molda comportamentos: políticas são filtradas pelo seu potencial de ganho ou perda eleitoral, alianças são firmadas ou rompidas conforme a conveniência nas urnas, e posicionamentos ideológicos podem se tornar flexíveis diante das preferências voláteis do eleitorado. A seguir, examinamos como esse cálculo eleitoral direciona alianças, discursos e políticas públicas no Brasil atual.

O medo de perder votos na política brasileira atual

Alianças volúveis e pragmatismo eleitoral é uma primeira manifestação clara do medo de perder votos, é como muitos políticos brasileiros costuram suas alianças. Em vez de coerência programática, prevalece um pragmatismo fisiológico: apoia-se quem estiver em ascensão ou quem possa garantir dividendos eleitorais.

Isso explica, por exemplo, porque diversas lideranças de direita permanecem atreladas ao Bolsonaro mesmo após 2022. Como vimos, potenciais nomes alternativos como Ronaldo Caiado e Tarcísio de Freitas evitam romper com a base do ex-presidente “com medo de perder votos”, tornando improvável o surgimento de uma “terceira via” política no momento. Esse comportamento indica que, para esses governantes, é menos arriscado manter-se alinhados a uma figura já consolidada junto a uma parcela do eleitorado do que buscar um caminho próprio e arriscar-se ao julgamento das urnas.

De forma mais ampla, o sistema partidário brasileiro — marcado pela proliferação de legendas — reflete essa lógica orientada pelo voto. Temos dezenas de partidos sem identidade ideológica clara; muitos funcionam como legendas de aluguel que negociam apoio em troca de vantagens. Pequenos partidos “nanicos” frequentemente alugam tempo de TV e vendem mercadorias políticas aos maiores, recebendo recursos do fundo partidário em troca, enquanto os partidos grandes compram o apoio dos menores financiando parte de suas campanhas.

Trata-se de uma feira invisível de bens políticos em que acordos são feitos nos bastidores visando amplificar tempo de propaganda e bases eleitorais, quase sempre com o objetivo final de garantir votos suficientes para eleger-se ou reeleger-se. Nessa dinâmica, a fidelidade ideológica ou o compromisso com certas pautas tornam-se secundários; o que importa é estar do lado vencedor ou colher os benefícios do poder de turno, evitando ficar sem mandato na próxima legislatura.

Discursos calculados e omissão em temas espinhosos é outra faceta do medo de perder votos. É percebida nos discursos públicos e nas pautas que não são abraçadas. Parlamentares e governantes fogem frequentemente de assuntos polêmicos ou reformas estruturais, temendo desagradar algum segmento do eleitorado e assim perder apoio.

Um exemplo clássico é a recorrente omissão em debates sobre questões morais e sociais controversas. Temas espinhosos como a legalização do aborto ou a redução da maioridade penal são evitados pela maioria dos deputados e senadores “pelo medo de perder votos”, preferindo a inação a arriscar enfrentar a divisão da opinião pública. Como percebemos na história recente da política brasileira, a omissão torna-se o caminho menos arriscado para o político que pensa somente na próxima eleição.

Essa lógica do cálculo eleitoral também emperra reformas essenciais. Medidas como a reforma tributária ou a reforma trabalhista — amplamente reconhecidas como necessárias para dinamizar a economia e gerar empregos — são sucessivamente postergadas porque exigem decisões impopulares de curto prazo. Muitos congressistas temem que apoiar tais mudanças estruturais possa custar-lhes capital político junto a eleitores mal-informados sobre seus benefícios de longo prazo.

Da mesma forma, reformas políticas que aumentariam a transparência e a accountability (como mudanças nas regras eleitorais, financiamento de campanha, voto distrital) raramente avançam, pois poderiam “dificultar a vida dos maus parlamentares” (Ramos et al., 2014). Em suma, pautas relevantes ficam paralisadas porque encará-las exige coragem para enfrentar narrativas contrárias e possíveis perdas eleitorais — coragem essa frequentemente suplantada pelo instinto de sobrevivência política.

No lugar do debate honesto, muitos optam por discursos genéricos e populismo simbólico, fazendo promessas fáceis ou adotando slogans populares que agradam imediatamente, mas evitando confrontar os desafios complexos que exigem diálogo mais profundo com a sociedade.

Políticas públicas orientadas pelo imediatismo eleitoral também influenciam o medo de perder votos, se evidencia na formulação de políticas e uso da máquina pública. Programas de governo e alocação de recursos por vezes são moldados menos por critérios técnicos ou de justiça social e mais pelo calendário eleitoral. Em anos de eleição, é notório o impulso por medidas populares de curto prazo — ainda que potencialmente prejudiciais no longo prazo — porque trazem retorno imediato nas urnas.

Uma prática controversa regida pela lógica do voto foi o uso do chamado “orçamento secreto” (emendas de relator RP-9) entre 2020 e 2022. Esse mecanismo permitiu que líderes do Congresso distribuíssem quantias vultosas de verbas federais diretamente a parlamentares aliados, sem transparência, para serem gastas em redutos eleitorais. O resultado foi uma enxurrada de obras e favores locais pouco coordenados nacionalmente, mas de alto impacto eleitoral para deputados e senadores beneficiados.

Estimativas indicam que mais de R$ 6 bilhões foram direcionados preferencialmente a membros do bloco do Centrão aliado ao então presidente, o que ajudou a garantir a reeleição de pelo menos 140 parlamentares dessa base em 2022 (Pires, 2022). Mesmo
partidos formalmente independentes se aproveitaram do esquema — no total, cerca de 198 deputados federais foram beneficiados e obtiveram sucesso nas urnas turbinados por essas verbas extras (Pires, 2022). Em troca, o governo assegurava maioria nas votações importantes, num típico acordo toma lá, dá cá.

Esse instrumento foi descrito como o principal mecanismo de barganha política no Congresso, pois delega controle de verbas públicas a parlamentares em troca de apoio legislativo (Pires, 2022). Do ponto de vista democrático, trata-se de uma deturpação das políticas públicas: recursos distribuídos não com base em planejamento ou mérito técnico, mas sim calibrados para maximizar votos e fidelidade política. Novamente, o fio condutor é o mesmo — a elite política usando os meios ao seu alcance para assegurar vantagem eleitoral e conservar poder.

O exemplo acima deixa evidente como o medo de perder votos direciona o comportamento político: alianças são seladas visando ampliar bases eleitorais, debates necessários são evitados para não dividir eleitores, e políticas públicas assumem um viés de curto prazo para agradar o eleitor imediatamente. As consequências disso para a governança são preocupantes. Problemas estruturais do país ficam sem solução, medidas impopulares, porém responsáveis tornam-se “radioativas” para a classe política, e o debate público empobrece, reduzido muitas vezes a estratégias de marketing ou manobras clientelistas.

Em última instância, essa dinâmica cria um ciclo vicioso: políticos apostam em manipulação simbólica (gestos vazios, retórica emocional, distribuição de benesses superficiais) para ganhar votos, o que mantém grande parte do eleitorado em um estado de alienação ou desinformação — perpetuando, assim, as condições que permitem a essas mesmas elites conservarem seu domínio. Como romper esse ciclo e alinhar a atuação política ao interesse coletivo? A resposta passa, necessariamente, pelo fortalecimento da sociedade civil e pela qualificação do eleitor.

Conclusão: educação política e o empoderamento do eleitor

Se o medo de perder votos é hoje o principal freio de nossos políticos, é preciso mudar as condições em que os votos são ganhos ou perdidos — ou seja, elevar o nível de consciência e exigência do eleitorado. A educação política é a ferramenta mais poderosa para reequilibrar essa relação, mas ela não deve ser monopólio do Estado. Pelo contrário, a sociedade civil organizada, as redes sociais, os projetos educacionais independentes e o trabalho voluntário têm hoje um papel central na formação de cidadãos críticos, conscientes e engajados.

Quando os eleitores compreendem melhor como funciona o sistema político, os mecanismos institucionais e os impactos reais das políticas públicas, tornam-se menos suscetíveis à manipulação simbólica e à retórica populista. Em outras palavras, um eleitor bem informado é um eleitor menos manipulável — e mais exigente quanto à coerência e responsabilidade dos seus representantes.

Nesse sentido, movimentos civis, institutos de formação, podcasts independentes, influenciadores engajados, professores, jornalistas, empreendedores sociais e voluntários são hoje os verdadeiros agentes da renovação democrática. Eles formam redes descentralizadas de conscientização, que atuam onde o Estado falha ou se omite, levando debates políticos para fora dos gabinetes e aproximando o cidadão comum das decisões que moldam sua vida.

Ao empoderar o eleitor de forma autônoma e contínua, essas iniciativas ajudam a romper o ciclo da alienação e criam um novo padrão de exigência política. Com o tempo, discursos vazios e promessas demagógicas perdem eficácia, e os políticos passam a temer não mais a perda de votos em si, mas a perda de credibilidade diante de uma sociedade vigilante. O medo de perder votos, então, pode ser canalizado para algo positivo: o medo de não corresponder às expectativas de um eleitorado esclarecido.

Portanto, não devemos esperar que a mudança venha de cima. Ela precisa vir da base — da sala de aula informal, dos grupos de leitura, dos perfis de conteúdo político nas redes sociais, dos coletivos de rua, das rodas de conversa, dos podcasts e dos canais que formam o novo ecossistema de educação política descentralizada. É por meio dessas iniciativas que o Brasil pode, enfim, transformar o voto em um instrumento de mudança, e não de perpetuação de elites inalteradas.

Tailize Scheffer

Tailize Scheffer

Cientista Política, doutoranda em Ciência Política. Criadora de conteúdo para a comunidade Politicando.

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