O Conto da Aia: Mais do que uma distopia, um alerta para a realidade

Em um futuro não tão distante, os Estados Unidos sofrem com a baixa taxa de fecundidade, ocasionada por uma série de problemas ambientais, como poluição do ar, do solo e da água, radioatividade e o modo de vida contemporâneo. Em meio ao caos, um grupo religioso intitulado “Filhos de Jacó” resolve “salvar o país”. Então, eles dão um golpe de Estado e matam o presidente, boa parte do congresso americano e os juízes da Suprema Corte. O país entra em uma nova guerra civil e a Lei Marcial é declarada. Tudo o que restou foi o Alaska, Hawaii e o governo no exílio. A República de Gilead é instaurada e, junto com ela, o seu terror.
Em Gilead, não existe liberdade, apenas obediência, medo, submissão e vigilância constante. Pessoas assumidamente LGBTQ+ são enforcadas em praça pública como sendo “Traidoras de Gênero”, hereges são forçadas a se converter e opositores políticos são massivamente perseguidos e mortos. Apenas comandantes e guardiões possuem privilégios, porém, mesmo entre eles, o sentimento é de constante desconfiança.
Além disso, em nome da fertilidade, todos os métodos contraceptivos foram abolidos. As mulheres são proibidas de trabalhar, estudar, ler, dirigir ou ter propriedades em seu nome. Elas são divididas por classe. As férteis e impuras como as divorciadas, adúlteras e prostitutas tornam-se Aias. Forçadas a engravidar de seus comandantes e servirem suas esposas, assim como Bila serviu a Jacó para que pudesse gerar filhos que depois seriam entregues à Raquel. As úteis, que são as mulheres a serviço de Gilead e as alto intelecto tornam-se Tias (que ordenam e controlam as Aias) ou Marthas (responsáveis pelos cuidados domésticos nas casas dos comandantes). Enquanto as inúteis ou se tornam Jezebels (prostitutas e cortesãs) ou enviadas às colônias para coletarem lixo radioativo até morrerem.
A sinopse retratada acima faz parte do romance distópico “The Handmaid’s Tale” (O Conto da Aia, em português) da escritora canadense Margaret Atwood. Apesar do romance ter sido publicado em 1985, sua história só fez sucesso em 2017, quando foi adaptada para uma série, e que teve a sua última temporada lançada este ano. Com o seu enorme sucesso no Streaming, a série tornou-se um marco na cultura popular, o que rendeu vários prêmios e aclamações. Ao mesmo tempo, as vestimentas vermelhas e o capuz branco de Aia tornaram-se símbolos de protestos em favor dos direitos das mulheres, sendo amplamente utilizadas por movimentos feministas.
Devido a essa politização, a história afastou muitos liberais, libertários e principalmente conservadores por considerarem a história “feminista demais”. Porém, O Conto da Aia é mais do que uma história meramente feminista. É sobre como o fanatismo religioso pode destruir a liberdade e nos tornar reféns da brutalidade estatal em pouco tempo e sem quaisquer possibilidades de reação.
A pergunta que toda distopia nos faz é “O que aconteceria se isso de ruim vier a acontecer?”. E o romance de Margaret Atwood responde a esta pergunta com maestria sobre como uma nação inteira, como os Estados Unidos, conhecido como o berço das liberdades, pode colapsar e cair nas mãos de fanáticos religiosos, em nome de um propósito “divino”. Mesmo que este propósito seja perverso e custe a vida de milhões em guerras e genocídios. Logo, ninguém estará salvo quando fanáticos religiosos tomarem o poder e deixarem todos inertes por meio do uso da violência estatal.
Na história, Gilead exerce os monopólios da violência e da vigilância de forma tão opressiva que laços familiares e sociais são rompidos impiedosamente. A protagonista June Osborne (interpretada pela atriz Elizabeth Moss) é raptada após uma tentativa de fuga mal-sucedida para o Canadá junto com o seu marido e sua filha. Porém, por ser fértil e impura, June é forçada a servir como Aia do comandante Fred e de sua esposa Serena, sob o nome Offred. No desenvolver da trama, em meios aos abusos do casal, June pergunta-se constantemente onde está a sua filha e o seu marido, mas não obtém respostas, sendo uma vítima não apenas da violência física, como também psicológica de todo o aparato em seu entorno.
Mesmo que os acontecimentos de Gilead sejam fictícios, o autoritarismo estatal é real em grande parte do mundo e em alguns países, como o Irã e o Afeganistão, o autoritarismo é atrelado ao fanatismo religioso. Somado a isso, um dos grandes problemas reais que levou à instauração da República de Gilead foi a baixa fecundidade. Atualmente, países como China, Japão, Coréia do Sul, Itália e Espanha vêm apresentando um acentuado declínio populacional, sendo esperado que até 2040 a população brasileira entre em declínio. Mas que já se encontra em um cenário abaixo de 2,1 filhos, o necessário para a recomposição e estabilização da população.
Por fim, mesmo que O Conto da Aia seja uma história fictícia, as ficções também possuem a incrível capacidade de nos alertar sobre os atuais contextos sociais e políticos atuais e do quanto a liberdade é frágil diante do fanatismo religioso e de um golpe de Estado bem orquestrado. Não podemos deixar que a irracionalidade e o desespero em prol da natalidade prevaleçam em meio a um mundo que permanece sem saber o que fazer diante da queda da natalidade e do aumento do autoritarismo estatal. Logo, temos o dever moral e ético de evitar que a República de Gilead deixe de ser uma ficção e se torne realidade, e nossos corpos usados e violados por agentes do Estado para os mais variados fins perversos.

